Onde estava eu no dia 24 de Abril de 1974...
Como sempre nos acontece há recordações que marcam as nossas vidas, por longo tempo. Umas mais. Outras assim-assim. A maioria passa para o Vale dos Esquecimentos, no caso foi isso que sempre aconteceu, e acontecerá, comigo.
Vagueando pelos meandros das minhas boas memórias, dei comigo a recordar o dia 24 de Abril de 1974 aqui dentro da minha casa, sentado nesta mesma sala, mas em vez de estar a sós comigo mesmo, nessa noite, além da minha companheira, e da nossa filhita mais velhita, apenas com 2 meses e seis dias de idade, estava a partilhar o serão connosco, o meu irmão mais novo.
A conversa versava sempre pelos nossos temas preferidos. Os dele, eram os desportos náuticos e os karts, já tinha posses para isso. Os meus, a fotografia e os automóveis do dia-a-dia. Os da mãe da nené, as suas preocupações diárias com os seus alunos.
As horas passavam lestas. A conversa abundava sem parar.
A dada altura escutei pela rádio, porque televisão não tínhamos, nem teríamos tão cedo, a famosa Grândola Vila Morena. Fiz-lhes sinal para escutarem. Boquiabertos, olhamo-nos estupefactos, como querendo adivinhar o significado de estarmos a escutar uma Canção Interventora, proibida, na altura, de ser escutada por todos nós.
Num lampejo, recordamo-nos do Movimento das Caldas da Rainha. Achamos que havia relação com aquilo que acabáramos de escutar. Sorrimo-nos com cumplicidade, mas num misto de preocupações futuras, sem tecermos muitos comentários.
Duas horas depois, cá em casa, dormia-se profundamente!
Seis da manhã, do dia 25 de Abril de 1974, hora habitual de me levantar, e a nossa filhota tomar o seu leitinho, arranjei-me, como normalmente sempre o fiz, e saí de casa sem suspeitar de nada, porque nunca foi hábito meu ligar o rádio tão cedo, pela manhã.
Por volta das sete e trinta, já a caminho da paragem dos autocarros, da Barraqueiro, dou de caras com um grupo de vizinhos, muito eufóricos que me anunciaram a Boa-Nova: A Revolução estalara. Fora anunciado pela rádio.
De um dos pequenos rádios portáteis escutei um dos muitos Comunicados do Movimento das Forças Armadas.
Não valia a pena deslocar-me para Lisboa porque os Autocarros não passavam para além do Quartel do Lumiar. As viagens passaram a ser à borla. Quem o desejasse que fosse!
O início da manhã estava morno. Recusei a viagem até Lisboa, porque dali até ao meu local de trabalho, sito na Rua Rosa Araújo, uma das transversais da Avenida da Liberdade, ainda seria perto de hora e meia a andar a pé!
Regressei a casa e, pelo caminho, ía cogitando em tudo aquilo que estava acontecer, sem ter quaisquer notícias concretas.
Chegado a casa, minha companheira, muito admirada com este meu regresso extemporâneo, perguntou-me o que me acontecera. Liguei o pequeno rádio portátil, levei-lho e disse-lhe para ir escutando as notícias, enquanto eu tentaria comunicar, via telefone fixo, um dos meus chefes, e os pais dela.
Da Companhia quaisquer dos telefones não atendia. Sintoma de não estar alguém por lá. Liguei para casa de um dos meus chefes que me informou ser melhor ficar por casa, pois as actividades comerciais estariam a zero durante uns dias. E assim aconteceu.
Liguei para casa dos pais da minha mulher e dei-lhes a saber que por cá estava tudo bem. Saberiam tanto como nós se seguissem os noticiários da TV e da Rádio.
Passados dias, iniciadas as actividades comerciais, fui confrontado com uma situação novíssima no mundo laboral. No espaço de uma semana vi o meu salário subir de 6.500$00 para 11.500$00 por via de um aumento geral igual para todos, menos para as chefias e directores. Mas como em Janeiro desse ano já se havia estipulado os montantes individuais dos aumentos gerais e aumentos de mérito, vi o meu salário subir para 12.500$00, cerca de 30 dias após o 25 de Abril.
Resultado destes dois aumentos. Aventurei-me a negociar um carro em segunda mão, um Fiat 600, em exposição num Concessionário da Fiat, a Auto Diniz de Almeida e Freitas, Lda., sita na Av. da Liberdade, cujo sócio gerente maioritário, era das minhas relações, de amizades antigas. Comprei-o, para facilitar as nossas deslocações diárias com a bebé recém-nascida, assim que a mãe reiniciasse a sua actividade laboral, como professora.
Comprei também uma máquina de lavar roupa, por causa das fraldas da bebé.
Não comprei televisor porque alguém se encarregou de nos oferecer um Grunding a preto e branco, para estarmos mais a par das notícias.
A vida ía rolando benfazeja, como todos se deverão recordar. Mas os nossos vencimentos, o da minha esposa e o meu, juntos davam e sobravam para fazermos a vida a que sempre estivemos habituados: Viver com frugalidade, sem luxos alguns, nem consumismos desnecessários.
O vencimento dela era para por no banco por inteiro. Do meu saíam as importâncias necessárias para a renda da casa, 950$00, alimentação, água, electricidade, gás, 12 prestações do carro, e 6 da máquina de lavar roupa, gasolina, em fim, uma vida folgada em que a metade do meu vencimento ficava junto ao da minha mulher, na nossa conta conjunta.
Recordo esses tempos, neste momento de muito boas recordações, como uma grande evolução nas nossas vidas pessoais, a todos os níveis
Em 1975, neste prédio de 40 famílias, onde ainda moro, existiam apenas 3 carros. O meu Fiat 600, um Austin Mini de uma senhora bancária, mãe solteira, com dois gémeos para educar, e uma furgoneta Ford Escort, pertencente a um exímio mecânico de um dos Concessionários Ford, a Auto Rali, Lda. Este senhor, somos ainda muito chegados, estabeleceu-se de imediato como reparador de automóveis, multi-marcas, e hoje é um dos distribuidores oficiais da Renault na Zona de Loures.
No ano seguinte, 1976, quase todos os moradores deste prédio se deslocavam em transporte próprio. Hoje, 2009, das 40 famílias iniciais, apenas 3 famílias se mantêm por cá.
Em 1976, eu e a minha mulher, com um grupo de moradores deste prédio, sugerido, e apoiado, pela nossa Comissão de Moradores, de então, fundámos o Jardim Infantil "O Saltarico", que começou a laborar no início do ano lectivo de 1977. Fundamo-lo com intuitos não lucrativos. Foi sempre uma obra de carácter social com vista ajudar os mais desfavorecidos que necessitavam deixar os filhos a custos baixos com alguém que os educasse.
Este Jardim de Infância ainda hoje existe, subsidiado pelo Estado, mas funciona pelos métodos actuais, a custos do ensino particular, para os seus utentes.
Entretanto passaram-se 35 anos. Envelhecemos outros tantos. Sonhámos muita coisa boa. Realizámos o que nos deixaram. Na altura nem Junta de Freguesia havia. Foi eleita por todos nós. Hoje usufruímos da sua existência que tem vindo a dar a este grande burgo grandes apoios sociais.
Até uma belíssima Piscina Municipal foi por aqui construída, onde novos e velhos vão dar as suas braçadas diariamente Campos de jogos polivalentes apareceram para nos darmos ao trabalho de jogar aos fins-de-semana. Alguns Campos de Ténis também foram construídos Grandes espaços verdes foram criados com zonas pedestres e de manutenção física, também foram criados.
Na altura nem médicos existiam por aqui. Tínhamos que ir a Loures às consultas, ou recorrer às Urgências do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Hoje temos um excelente Centro de Saúde, pelo qual lutamos anos a fio.
Um rico e funcional posto da PSP, uma Estação dos Correios, 3 Bancos, vários Restaurantes, muitos Cafés, 3 Farmácias, algumas casas comerciais diversificadas, vários talhos, mercearias de bairro e, mesmo no topo de Santo António dos Cavaleiros, bem servido de transportes, de 15 em 15 minutos, há um complexo logístico apoiado pela organização Continente.
Eis a minha singela homenagem aos vitoriosos do Movimento das Forças Armadas que concluíram com êxito, o processo que deu início à nossa novíssima Democracia Portuguesa!
Marcolino Duarte Osório
- Peregrino -
2009-04-24